sábado, 18 de novembro de 2017

SATANÁS NÃO É UM SER PESSOAL - SAIBA POR QUE?



           O mundo cristão em que vivemos atualmente traz consigo uma visão completamente dualista em oposição à visão monista característica dos escritos veterotestamentários pré-exílicos. 
Nesta visão dualista, dois princípios iguais e opostos travam combate pelas almas dos homens. Há um conflito cósmico entre o Criador e sua criatura e o ser humano inserido nesse meio. Este tipo de visão dualista traz prejuízos para a prática cristã, porque acaba eximindo o ser humano de suas responsabilidades pessoais, projetando-os sobre outra pessoa, externamente. 

Na Cosmovisão cristã atual, o tema acerca de quem ou o que é “satan” é muito complexo e na realidade encontra-se entre os últimos temas que uma pessoa, seja cristã ou não, chega a compreender.

Não há no imenso cosmos (biblicamente falando) algum poder que se oponha ao poder de Deus. Nesta visão dualista acabaram por criar um outro“deus” que se tornou o responsável pelos pecados da humanidade. 


     Muitos cristãos trazem consigo uma visão de mundo e um conjunto de conceitos que aprendeu e que não se modificam mesmo ao ingressarem na igreja. Estes conceitos assim compreendidos se tornam perigosos porque subentendem uma forma de crença sem base bíblica. 

E, mesmo sabendo que Deus é Todo-Poderoso, essas pessoas temem o sobrenatural, pois ao crer dessa forma pensam que existe um poder autônomo e independente de Deus que atua neste mundo levando os seres humanos ao pecado e longe da salvação que Deus proporciona. Sem contar que isso parece uma espécie de mecanismo de defesa, na qual se projeta em outro ser (o anjo caído), seus próprios pecados. 

E, além disto, este tipo de conduta é uma forma de cristianismo idolátrico, onde o cristão precisa “batalhar” para ajudar Deus a vencer o seu maior inimigo.

Desta forma, conhecer o significado do vocábulo “satan” em seu contexto original, bem como interpretar as referidas passagens bíblicas em que ocorrem é útil para que se descubra que estas passagens não se referem a um ser sobrenatural do mal que leva os homens ao pecado. 

Ao descobrir isto, podemos assumir plenamente a nossa responsabilidade pessoal pelo pecado que cometemos e descartar que somos influenciados por algo externamente a nós, pois é do coração (interior) do ser humano que procedem toda espécie de males (Marcos 7:21; Tiago 1:14), não de um ser sobrenatural do mal chamado pelo nome pessoal de “Satanás”.

Hoje, falaremos sobre o significado do vocábulo "satan" nas escrituras hebraicas e trataremos de esclarecer algumas passagens significantes.




SIGNIFICADO DO VOCÁBULO “SATAN” NAS ESCRITURAS HEBRAICAS 



O vocábulo “satan” no hebraico se escreve como Shin - Tet - Nun (stn - שטן) e deriva de raiz semelhante. Esta raiz é usada de forma geral para indicar oposição ou acusação

O Antigo Testamento utiliza a palavra satan (heb.שָטָן) para se referir a adversários ou opositores no sentido geral assim como opositores espirituais. 

Brown & Coenen (2000, p.2272) observam que este vocábulo “aparece em ambos os testamentos da bíblia. No Antigo Testamento significa um adversário ou oponente maligno”.

De acordo com Scharf-Kluger, a palavra satan, em sua forma verbal significa literalmente: "perseguição por meio do impedimento de se fazer um movimento livre para frente"
Como substantivo significa um adversário ou um acusador. Assim a palavra era de uso frequente na linguagem coloquial. 

De fato o próprio Yahvéh (ou o anjo de Yahvéh) pôde provar-se como um adversário (satan) para o homem, como vemos na narrativa de Balaão em Números, capítulo 22. (SCHARF-KLUGER? apud SANFORD, 1988, p. 42, grifos nossos).



ESTATÍSTICA



As palavras derivadas do termo hebraico “satan” aparecem 33 vezes, em 28 versos do texto hebraico do Antigo Testamento, geralmente com o sentido de “oposição, obstrução ou adversário”. 

Como essas, as demais indicam um adversário ou ideia semelhante, sem qualquer carga pessoal no vocábulo ou indicação de personagem celestial. 

O termo funcionava como um adjetivo usado com referencia a pessoas ou realidades que se opunham. (MIRANDA, 2007, p.16,17, grifos nossos). 


Diante dos dados acima, percebemos que este vocábulo é frequentemente mal compreendido, mal interpretado e com isso foi adotado no meio cristão como nome pessoal de um suposto anjo rebelde, inimigo de Deus




ESCLARECENDO PASSAGENS BÍBLICAS RELEVANTES




GÊNESIS 3 e a Serpente 



                É surpreendente para muitos não encontrar menção a satanás quando examinam o livro de Gênesis, mas apenas menção a uma serpente que falava. 

A opinião comum alega que “satanás” aparece pela primeira vez nas escrituras hebraicas no relato da tentação de Eva.

Popularmente ouve-se falar que a serpente com o poder da fala, representou a primeira manifestação mediúnica na história. Todas estas opiniões não passam de desconhecimento tanto da história das religiões, quanto de erros de interpretação bíblica. Não se pode concordar textualmente com esta assertiva. 

Analisando estas opiniões, percebi que a crença comum popular introduziu elementos ao relato bíblico da tentação de Eva que não existem absolutamente no texto.

No relato de Gênesis 3 estão em cena 3 personagens: Adão, Eva e a serpente.

O texto já começa dizendo: 

A serpente era a “mais astuta que todas as alimárias do campo que o SENHOR Deus tinha feito e esta (a serpente) disse à mulher (v.1)”.


À parte da questão de se tratar ou não de um relato mitológico, o fato é que dando atenção ao que o texto diz, visualizamos um animal criado por Deus, o mais astuto e que tinha o dom da fala. 

Não se constata nenhuma evidência textual que qualquer coisa tenha estado dentro da serpente para induzi-la a fazer o que ela fez. (Cf. 2ª Cor. 11.3). [AA]

Segue-se então a descrição de como ocorreu a desobediência de Eva, mas do v.14 em diante percebe-se uma sequencia interessante: 


a) No v. 14 e 15 Deus pune a serpente: [...] Maldita será mais que toda besta [...]; 

b) No v. 16 Deus pune a mulher: [...] Multiplicarei tua dor e conceição [...]; 

c) No v. 17 é a vez de Adão: [...] Maldita é a terra por causa de ti [...]; 


Os 3 personagens da cena envolvidos na tentação receberam a justa punição por desobedecerem, mas o argumento que se ouve atualmente está desprovido de lógica bíblica e racional, pois porque Deus puniu aqueles três em seguida a suas desobediências, mas não puniu o “satan” [do conceito popular], sendo ele o real instigador da tentação de Eva? 

Qual foi a razão da não punição dele? 

O texto relata somente 3 seres. Onde estaria o quarto ser (satanás)? 



NÚMEROS 22 



A primeira e real ocorrência da palavra “satan” na bíblia hebraica não está no livro de Gênesis. Encontra-se, porém, no livro de Números, capítulo 22


A ira de Deus se acendeu, porque ele ia, e o anjo do Senhor pôs-se-lhe no caminho por adversário [heb. לשטן – le satan]. Ora, ele ia montado na sua jumenta, tendo consigo os seus dois servos. (Nm 22:22)



A outra passagem está em Números 22:32



Disse-lhe o anjo do SENHOR: Por que já três vezes espancaste a tua jumenta? Eis que eu te saí como adversário [heb. לשטן – le satan], porquanto o teu caminho é perverso diante de mim (Nm22:32)



Observa-se aqui que o “satanás” da passagem é o próprio Anjo do SENHOR que se opôs a Balaão quando ele saía para amaldiçoar o povo de Israel. É de fato um ser sobrenatural, porém, não o satan do conceito popular



1 SAMUEL 29:4 e 2 SAMUEL19:22



Mas os chefes dos filisteus muito se indignaram contra ele, e disseram a Áquis: Faze voltar este homem para que torne ao lugar em que o puseste; não desça ele conosco à batalha, a fim de que não se torne nosso adversário (לשטן – le satan) no combate; pois, como se tornaria este agradável a seu senhor? Porventura não seria com as cabeças destes homens?  (1Sm. 29:4)



Mas Davi disse: Que tenho eu convosco, filhos de Zeruia, para que hoje me sejais adversários? (לשטן – le satan ). Será morto alguém hoje em Israel? Pois não sei eu que hoje sou rei sobre Israel? (2Sm 19:22)



Nestas passagens os filisteus referiam-se a David como um “satan” no contexto militar, representando um inimigo dentro de suas fileiras. David era literalmente um "satan" deles.



1 REIS 



(1 Reis 5:4) - Agora, porém, o Senhor meu Deus me tem dado descanso de todos os lados: adversário(satan – שטן) não há, nem calamidade alguma.



(1 Reis 11:14) - O Senhor levantou contra Salomão um adversário (satan – שטן) Hadade, o edomeu; o qual era da estirpe real de Edom. 



(1 Reis 11:23) - Deus levantou contra Salomão ainda outro adversário ( satan – שטן) Rezom, filho de Eliadá, que tinha fugido de seu senhor Hadadézer, rei de Zobá. 



(1 Reis 11:25) - E foi adversário (satan – שטן) de Israel por todos os dias de Salomão, e isto além do mal que Hadade fazia; detestava a Israel, e reinava sobre a Síria. 



Nestas passagens, os “satanazes” são apenas seres humanos comuns. Hadade, o Idumeu e Rezom, que se opuseram a Salomão. Não há nenhuma figura de um “anjo caído” descrita nestes textos. 



SALMOS 



(Salmos 38:20) - Os que dão mal pelo bem são meus adversários (sotnei – שטני), porque eu sigo {o que é} bom. 

(Salmos 71:13) - Sejam envergonhados e consumidos os meus adversários (sotnei - שטני); cubram-se de opróbrio e de confusão aqueles que procuram o meu mal. 

(Salmos 109:4) - Em paga do meu amor são meus adversários (yistenuni - ישטנוני), mas eu me dedico à oração. 

(Salmos 109:20) - Seja este, da parte do Senhor, o galardão dos meus adversários (sotnai – שטני), e dos que falam mal contra mim! 

(Salmos 109:29) - Vistam-se de ignomínia os meus acusadores (sotnai – שטני)e cubram-se da sua própria vergonha como dum manto! 



Em todos os versos acima se percebe o sentido do vocábulo “satan” e sua raiz “stn” que traz a conotação de “oposição, ser adversário” e não traz nenhuma conotação de algum ser sobrenatural do mal. Os textos falam a respeito de seres humanos. 



ESTER



(Ester 7:4) - Porque fomos vendidos, eu e o meu povo, para sermos destruídos, mortos e exterminados; se ainda por servos e por servas nos tivessem vendido, eu teria me calado, ainda que o adversário (satan - שטן) não poderia ter compensado a perda do rei.



(Ester 8:1) - NAQUELE mesmo dia deu o rei Assuero à rainha Ester a casa de Hamã, inimigo (Satan - שטן) dos judeus; e Mardoqueu veio perante o rei; porque Ester tinha declarado o que lhe era. 



Hamã é descrito como “o satan” do povo judeu. Estes dois versos foram traduzidos na septuaginta como “τῷδιαβόλῳ” (hodiabolos). Embora a ARC 1969 não tenha colocado o artigo definido antes do vocábulo satan, no original hebraico ele se encontra. Isto demonstra claramente que a palavra não é um nome de um ser pessoal e maléfico, porém significa simplesmente “adversário, aquele que se opõe”. 

“O satan aqui é Hamã, um ser humano”. 




CONSIDERANDO UMA PASSAGEM PARALELA



Os registros de Reis e Crônicas têm grandes seções onde existem paralelos. A passagem paralela a ser considerada é 2 Samuel 24:1 e 1 Crônicas 21:1



(2Sm 24:1) - A ira do Senhor tornou a acender-se contra Israel, e o Senhor incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, numera a Israel e a Judá.



(1 Cr. 21:1) - Então Satanás (satan – שטן) se levantou contra Israel, e incitou Davi a numerar Israel.



Percebe-se que na passagem de 1 Crônicas 21, os tradutores convencionaram deixar a palavra “satan” sem tradução. 

A passagem deveria conter a tradução: "Então o “adversário”(satan – שטן) se levantou contra Israel e incitou Davi a numerar Israel". 

A palavra hebraica "satanás", como explicada inicialmente significa apenas “um oponente ou adversário”, possuindo carga funcional e não nominal.

Em outras palavras, comparando o texto de 2 Samuel com o texto de Crônicas, estes querem nos informar que o próprio SENHOR foi um adversário contra Israel.

O texto mais antigo mostra que a motivação para o pecado é a “ira de Yavéh”, enquanto no texto mais recente é “satan”. Comparadas verificamos que o próprio Deus incitou Davi a fazer o censo de Israel. 

Isto mesmo, Deus foi "satan - adversário" contra David.



Miranda (2007, p.18) diz que “nestas passagens paralelas, são encontradas evidencias de que no período pré-exílico via-se Yahwéh como a origem de todos os acontecimentos, tanto bons quanto ruins e que nesses dois lugares o termo tem mais carga funcional do que nominal”. 



ZACARIAS



(Zacarias 3:1,2) - E ele mostrou-me o sumo sacerdote Josué, o qual estava diante do anjo do SENHOR, e Satanás (ve´hasatan – והשטן) estava à sua mão direita, para se lhe opor (le´sitno – לשטנו). Mas o Senhor disse a Satanás (hasatan – השטן): O Senhor te repreenda, ó Satanás (hasatan – השטן), sim, o Senhor, que escolheu Jerusalém, te repreenda; não é este um tição tirado do fogo?



A palavra hebraica “satan” e sua variante ocorre quatro vezes nestes dois versículos. É muito importante ler o contexto aqui para descobrir que não se trata de algo literal. Esta “visão” é considerada como a terceira aparição de um “satan” sobrenatural nas escrituras hebraicas, ao lado das passagens de Números 22 e Jó 1. 



“Zacarias tem a visão e conversa com um anjo que a explica, porém aquilo continua ainda um tanto confuso, como em um sonho”. (KELLY 2008, p.33). 



Observando-se os capítulos anteriores verifica-se que o conjunto de visões que o profeta está tendo aponta para um quadro geral de fatos que estavam acontecendo com Jerusalém no período em que Zacarias escreveu suas profecias, que data aproximadamente de 520 a.C e reflete as condições de Jerusalém no segundo ano do reinado de Dario I. 

A cena estabelecida aqui é semelhante à sala de um tribunal em que ambos – Josué e o satan - estão em oposição diante do Anjo do SENHOR, aguardando uma decisão sobre a acusação. O “satan” está à direita de Josué para se lhe opor (literalmente “ser um satan dele”). 


Miranda (2007, p. 18) afirma que a missão do “satan” aqui é “impedir algum avanço (como no caso de Balaão), provocar a queda (como é o caso de Davi e Jó) ou acusar de impureza (no caso do sacerdote Josué)”.  A ideia que o texto traz é a de um promotor de justiça para se opor a homens e mulheres. 

Todas estas condições são qualificativas da expressão hebraica “satan” e não sugerem absolutamente que se trata de um ente do mal que caiu do céu. 

Não se deve pensar também que o sumo-sacerdote Josué fora transladado ao céu, na presença do SENHOR, assim como não se deve pensar que o homem do capítulo 2 teria a capacidade de medir Jerusalém com um cordel de medir. (Cf. Zac. 2:1,2). Trata-se de uma visão profética, não de algo literal ocorrendo na presença imediata de Deus. 

Além disto, entende-se que não é possível compreender esta profecia como algo literal, porque causaria sérios problemas para a visão cristã tradicional, pois teria que se admitir que este “satan” teria livre acesso ao céu, à presença de Deus, mesmo depois de ser expulso de lá. 

Deve-se observar que o uso desse vocábulo aqui trata de algum adversário cuja identidade há de ser procurada analisando o contexto da profecia. Este contexto é reforçado quando se percebe que a própria imagem de um falso acusador sendo mostrada à direita de Josué em uma cena de tribunal é encontrada também em outra passagem das escrituras hebraicas. (Salmos 109:6, 7). 

Ao analisar os capítulos 3 e 4 de Esdras, verifica-se que muitos adversários se opuseram a construção do templo de Jerusalém fazendo cessar a obra, no mesmo ano em que a profecia de Zacarias é indicada no capítulo 3. (Cf. Esdras 4:24 - 5:1). 

Percebe-se que o sumo-sacerdote e a cidade são representativos de todo o povo de Israel (cf. Zac. 3:8-10). Se o vocábulo fosse traduzido corretamente, não haveria nenhum problema na questão da interpretação. 

Este “adversário”, portanto, está agindo contra os homens de Jerusalém e não indica um ser sobrenatural do mal, como na visão cristã tradicional. 


NOTA:

Todas as citações bíblicas são da Versão AA (Almeida Atualizada), a menos que seja indicada outra versão.





Nos próximos artigos trataremos sobre o livro de Jó.

Marcelo Valle


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