sábado, 7 de maio de 2016

Sobre os "demônios" na bíblia - O que penso como teólogo! #1






Uma análise cuidadosa dos relatos sinóticos acerca dos milagres de Jesus e de seus discípulos mostra que onde havia evidências físicas claras das causas de uma doença, a doença era simplesmente explicada: os homens eram cegos, coxos, surdos, não podiam endireitar-se, com sangramento contínuo, ou eram leprosos. 
Só quando não havia nenhuma causa física óbvia, ou onde a doença era inexplicável pela informação disponível no momento, isto era então causado supostamente por espíritos malignos.

Comecemos com um exemplo para ilustrar o caso:

No evangelho de Mateus, dois casos de cura estão reunidos. O primeiro refere-se a dois cegos a quem Jesus curou. (Mateus 9:27-30). O relato diz simplesmente: 


Então lhes tocou os olhos, dizendo: Seja-vos feito segundo a vossa fé.
E os olhos se lhes abriram (
Mateus 9:29,30).


Mas logo depois, quando os dois homens se retiraram, outro homem foi levado a Jesus. Ele estava "mudo e endemoninhado" (versículo 32). 

Como é estranho pensar que os dois homens estavam cegos somente porque seus olhos necessariamente estavam abertos (evidencias físicas visíveis) mas o homem era mudo (sem causas físicas óbvias), porque estava possuído por demônios!

Se realmente existe um mundo espiritual habitado por demônios que causam estas doenças, ambas teriam que ter sido causadas por espíritos imundos. A única explicação que faz sentido e que concorda com o resto do ensino da Bíblia, é que as doenças sem causa aparente foram atribuídos naqueles dias aos chamados "maus espíritos".


À época de Cristo, as doenças eram geralmente atribuídas aos "demônios". Assim nos diz Geza Vermes:

Para avaliar corretamente as atividades de cura e exorcismos de Jesus, é necessário saber que, em épocas passadas, os judeus entendiam haver um relacionamento entre as doenças, o demônio e o pecado. Como complemento lógico de semelhante conceito de má saúde, acreditava-se em consequência, ainda no século III a.C, que recorrer aos serviços de um médico era falta de fé, visto ser a cura monopólio de Deus. [1]



Nos relatos dos sinóticos, podemos retirar alguns paralelos que me parecem corroborar com esta afirmação:




Em Lucas 11:14, diz-se que o demônio expulso por Jesus era mudo


"Estava Jesus expulsando um demônio, que era mudo; e aconteceu que, saindo o demônio, o mudo falou; e as multidões se admiraram".


E isto pode ser depreendido de outras passagens também:


As passagens que explicam e expandem a de Lucas estão em Mateus 9:32-34 e Mateus 12:22-32. (Observem o grifo):


Enquanto esses se retiravam, eis que lhe trouxeram um homem mudo e endemoninhado. E, expulso o demônio, falou o mudo e as multidões se admiraram, dizendo: Nunca tal se viu em Israel. Os fariseus, porém, diziam: É pelo príncipe dos demônios que ele expulsa os demônios. (Mateus 9:32-34)


Trouxeram-lhe então um endemoninhado cego e mudo; e ele o curou, de modo que o mudo falava e via. E toda a multidão, maravilhada, dizia: É este, porventura, o Filho de Davi?
Mas os fariseus, ouvindo isto, disseram: Este não expulsa os demônios senão por Belzebu, príncipe dos demônios. Jesus, porém, conhecendo-lhes os pensamentos, disse-lhes: Todo reino dividido contra si mesmo é devastado; e toda cidade, ou casa, dividida contra si mesma não subsistirá. Ora, se Satanás expulsa a Satanás, está dividido contra si mesmo; como subsistirá, pois, o seus reino?
E, se eu expulso os demônios por Belzebu, por quem os expulsam os vossos filhos? Por isso, eles mesmos serão os vossos juízes.
Mas, se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demônios, logo é chegado a vós o reino de Deus.
(Mateus 12:22-28)






Comparem com atenção as duas perícopes de Mateus com a de Lucas. Percebam que não foi o demônio (considerado um ser espiritual do mal) que dominou o corpo da pessoa e lhe causava transtornos físicos, neste caso a mudez. 

O próprio relato de Lucas, em várias versões, mostra que não era o "demônio" que causava a mudez, mas o demônio era a "própria mudez”. 


Afinal, o homem estava mudo por causa do demônio que estava nele, ou o demônio era mudo mesmo? 

Outra visão: é possível que a palavra demônio tenha sido utilizada de forma figurativa?

Parece-me que quando o demônio (mudez) foi expulso, é lógico presumir que sua "expulsão" representa sua "cura". 

É o que o texto de Mateus 12:22 indica: "...e ele o curou, de modo que o mudo falava e via".

Mateus 8:14-17 nos mostra que há esta possibilidade, em compreender que "expulsar" demônios significa "curar" as enfermidades. 

O episodio emblemático mostra Jesus entrando na casa de Pedro que estava com sua sogra em estado febril, e que quando Jesus toca-lhe com a mão, diz o texto: "a febre a deixou". A febre não é uma entidade pessoal que entra e sai de um ser humano! É um sintoma de enfermidade.

Da mesma forma, o texto diz que lhe eram trazidos muitos "endemoninhados", que com sua palavra "expulsava os espíritos" e "curava" todos os enfermos. E isto, para que se cumprisse o que diz o profeta "Ele tomou as nossas enfermidades e levou as nossas doenças"......

A clareza do texto assusta: Uma profecia sobre cura de enfermidades sendo aplicada a episódios em que Jesus na verdade expulsava os demônios! 
Claro, demônios eram considerados como doenças no tempo de Cristo.


Raymond Brown resume muito bem esta questão:

Alguns dos casos em que os evangelhos sinoticos descrevem como exemplos de possessão de demônios parecem ser casos de enfermidade natural. Você não pode evitar a impressão de que algumas vezes, em relação à possessão de demonios, tanto os evangelistas como Jesus estão refletindo o inexato entendimento medico-religioso de sua época.[2]

Joachim Jeremias diz do mesmo modo:

As enfermidades de toda classe se atribuíam aos demônios, especialmente as diferentes formas de enfermidades mentais; [...] Não há, portanto, nada surpreendente no fato de que os evangelhos também retratem a enfermidade mental como uma possessão de demônios. Eles falam na linguagem e conceitualização de sua época.[3]


Mateus 17:15 diz:

“Senhor, tem misericórdia de meu filho, que é lunático e sofre muito; pois muitas vezes cai no fogo e muitas vezes na água; E trouxe-o aos teus discípulos; e, não puderam curá-lo. E Jesus, respondendo, disse: Ó geração incrédula e perversa! até quando estarei eu convosco, e até quando vos sofrerei? Trazei-mo aqui. E repreendeu Jesus o demônio, que saiu dele, e desde aquela hora o menino sarou”. 

A passagem paralela, Marcos 9:14-29 descreve a mesma pessoa com “espírito mudo” que o apanhava, o despedaçava, o fazia espumar e ranger os dentes (v. 17,18). Em Lucas 9:39 afirma que um “espírito o tomava” e não o largava até o quebrantar.

Observe que ser "lunático" - afetado pela lua – ou na expressão de Marcos e Lucas – "possuído por um espírito" - não significa que ele esteja possuído por algum demônio (na cultura tradicional), apenas que ele era uma pessoa que sofria um mal – a epilepsia pode ser verificada aqui, pelos sintomas descritos no texto. 

Tanto é que quando Jesus repreende o mal, o texto descreve como o menino sendo "curado". Mateus ainda informa que o “espírito era mudo e surdo” (Mateus 17:25).






Demônio no texto é uma expressão figurativa. O relato de "satanás expulsando satanás" foi feita em forma de parábolas. Confira Marcos 3:22,23; 4:2


Fontes antigas (como por exemplo, os manuscritos de Qumran, livros de demonologia como o 1º Testamento de Salomão e inscrições em cerâmica e paredes), confirmam o que sabemos dos evangelhos sinóticos, que a maioria dos judeus acreditava que quaisquer doenças que não podiam explicar, eram causadas por “demônios”. Mas, se eles pudessem explicar uma doença, como por exemplo, a lepra ou a paralisia, então eles não a atribuíam aos demônios. 

Veja esta citação de Geza Vermes [4]


"No mundo de Jesus, o diabo se acreditava ser a base da doença, bem como do pecado. A ideia de que os demônios eram responsáveis por todos os males físicos e morais penetrou profundamente no pensamento religioso judaico, no período após o exílio babilônico, sem dúvida, como resultado da influência iraniana sobre o Judaísmo nos séculos V e IV a.C quando a Palestina, bem como os judeus da diáspora leste foram objeto de domínio persa diretamente"

Veja, por exemplo, que Mateus descreve a doença do servo do centurião de Cafarnaum como "violentamente atormentado", ao passo que Lucas o descreve como "doente e moribundo". (Lucas 7:2,3 e Mateus 8:5,6). 

Há um paralelo interessante nos sinóticos, onde podemos comparar a linguagem de Jesus sobre "expulsar demônios" como "saindo das pessoas" e as enfermidades também como "saindo das pessoas". Exemplo disso verificamos em Marcos 1:25,26 e 30,31 e passagem paralela: Lucas 4:35,36 com 39,40 e 41.


Concluindo, é somente pela visão cristã ortodoxa que se consegue achar que são os demônios que causam tormentos aos seres humanos. Os argumentos usados nos sinóticos são concebidos para levar os leitores à conclusão de que vida e morte, doença e saúde estão em última instância nas mãos de Deus e a única cura foi fornecida (segundo os relatos) através de Seu filho.




Marcelo Valle



DES-DOGMATIZAR O CRISTIANISMO - UMA NECESSIDADE CADA VEZ MAIS REAL




NOTAS:



[1] VERMES, Geza - JESUS E O MUNDO DO JUDAISMO - Ed. Loyola, Sao Paulo, 1996 - p. 16

[2]BROWN, Raymond - An Introduction to New Testament Christology (London: Geoffrey Chapman, 1994) p. 41. Apud HEASTER, Duncan - The Real Devil - disponivel em: <http://www.realdevil.info/4-3es.html>

[3] JEREMIAS, Joachim - New Testament Theology (London: S.C.M 1972) p. 93. Apud HEASTER, Duncan - The Real Devil - disponivel em: <http://www.realdevil.info/4-3es.html>

[4] VERMES, Geza - Jesus, o Judeu - p. 61 (1981)

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